Nova década, mundo velho.

Este ano inaugura uma nova década do milênio nascente, do modo como contamos o tempo no ocidente.
Nomear o tempo é um dos modo que inventamos de dar sentido às coisas, não porque elas não tenham um sentido por si mesmas, mas porque nos esquecemos que sentido é esse.
De toda maneira sempre esperamos que tudo se renove, desde as nossas esperanças e energias, até o emprego efetivo desse potencial humano, nas nossas relações sociais e em todas as nossas ações.
No entanto, bem pouco tempo é necessário até que esse ritual de renovação esgote seu sentido emprestado dos antigos ritos sazonais ligados à sucessão das eras.
Essa semana, uma garotinha está passando as férias conosco. Uma garotinha de uma família humilde, filha da manicure da minha mulher.
É uma garotinha linda, de nove anos, e muito esperta.
Ontem ela contou uma história que me cortou o coração em pedaços.
A briga de gangues em seu bairro produz com freqüência corpos banhados em sangue pelo chão, e ela descreveu com detalhes assombrosos para figurarem no universo de uma criança de nove anos, o medo e a desesperança que acomete as pessoas que vivem nesse bairro.
Não cito aqui nomes nem quaisquer outros detalhes, nem mesmo o nome do bairro, porque isso poderia comprometer a segurança da garota.
Mas basta que eu diga que, no começo de 2010, fui apresentado a uma realidade que me envergonhou de ser brasileiro e cearense, e me deixou – eu que creio que Deus não age à nossa revelia, mas através de nós – com a obrigação de tentar atender algo das orações com que essa criança brinda os anjos diariamente, pedindo que lhe arrumem um lugar seguro para morar, longe da brutalidade que a tem cercado desde bebê.


Adriano e os Outros

 

Doença mental ou Revelação Espiritual?
Doença mental ou Revelação Espiritual?

Muito bonito, este artigo do Emir Sader. No entanto, a desconsideração do que é doença mental é flagrante. Doença mental não pode mais ser considerada apenas de um ponto de vista político, sociológico ou filosófico. A questão tem vieses psicológicos e psiquiátricos que não podem ser ignorados, sob pena de perdermos de vista alguns de seus aspectos essenciais.

A anti-psiquiatria foi um movimento importante para a humanização da psiquiatria e a consideração do doente mental não como um outro segregado, com quem pouco temos em comum, mas alguém que, cada dia mais, pode ser um de nós, podemos ser, na verdade, nós mesmos. No entanto, aprendemos um bocado sobre doença mental, para a confundirmos com insatisfação social, ou resistência passiva. 
Adriano já demonstrava diversos sinais de desequilíbrio, antes da notícia de sua decisão em parar de jogar futebol por um tempo indeterminado.
Desde 2004, quando ocorreu a  morte do seu pai, nunca mais foi a mesma pessoa. Mesmo tendo formado o “quadrado mágico” com   Kaká, Ronaldo e Ronaldinho, e de ter sido um dos destaques na conquista da Copa das Confederações, em 2005, seu declínio em performance foi visível, em 2006, quando ficou fora de forma e ao ser liberado pela diretoria do Inter para descansar, foi visto em bailes funk e andando pelas ruas da cidade na garupa de uma moto. Em outubro do mesmo ano, um jornal sueco divulga fotos de Adriano, cercado de mulheres, cigarros e bebida alcoólica: não parece ser, então, do tipo que larga tudo por uma vida simples. 
Em 2007, Adriano continua seu (des)caminho para um colapso: sequer é inscrito na primeira fase da Liga dos Campeões. Em setembro do mesmo ano, sua mãe viaja à Itália para tentar ajudá-lo. Em dezembro, é eleito, pelo segundo ano consecutivo, como o pior jogador da Itália, sofre um acidente durante as férias de fim de ano. Segundo imprensa italiana, o jogador estaria bêbado. Seu empresário negouEmprestado ao São Paulo pelo Inter, Adriano ameaça fotógrafo e deixou treino do Tricolor Paulista sem autorização. Após ser reeprendido, o atacante pediu desculpas. No começo deste ano, foi suspenso por três jogos após dar um soco em um zagueiro do Sampdoria,  a imprensa italiana noticia que a diretoria do inter  estaria revoltada com suas noitadas, e em em abril, não se reapresenta ao Inter de Milão, após defender a seleção brasileira nas eliminatórias. Seu empresário diz que ele está passando por graves problemas particulares e, logo após, Anuncia que vai parar de jogar futebol por tempo indeterminado
Isso me parece uma história de deterioração, associada ao abuso de álcool, não um processo de descoberta espiritual, em que uma pessoa termina por descobrir que quer mesmo é morar na favela, junto dos seus, em um episódio de iluminação mística. Estes episódios, inclusive, são difíceis de discernir, ainda que não indiscerníveis, de simples crises maníacas de fundo religioso, provocadas conjunta e complexamente por fragilidades genéticas e estressores ambientais. Certamente, o contexto e a vida pregressa de uma pessoa devem ser levados em conta na feitura desta distinção.
Embora um diagnóstico dado com base em notícias seja intrínsecamente frágil, podemos supor que Adriano tem problemas com controle de impulsos e adição alcoólica, e que isso tem prejudicado seu desempenho profissional e social. Dinheiro e fama podem ser o inferno, e é realmente uma loucura contemporânea a adição por consumo e a busca desenfreada pela celebrização. Precisamente estes estressores, em conjunto com outros, podem ter causado o declínio do atleta, que já tinha suas fragilidades inerentes. 
Desculpem estragar a poética do artigo, mas acho que uma coisa é a doença da sociedade de consumo, e outra coisa é a doença mental de Adriano, seja ela qual for. Uma coisa pode implicar na outra, mas confundir as duas coisas denota uma visão de mundo que pode até ser romântica, mas que, no cotejo com os fatos, revela-se rasa e infecunda, além de contribuir para a desinformação em geral sobre sofrimento psíquico e doença mental.

Simon Baron Cohen: Nossa pesquisa não dizia respeito a avaliação pré-natal do autismo

Simon Baron Cohen

Diretor do Autism Research Centre, Cambridge University sb205@cam.ac.uk

Em 12 de janeiro de 2009, o jornal inglês The Guardian publicou uma matéria sobre a pesquisa conduzida por Baron-Cohen e sua equipe na universidade de Cambridge. Essa notícia repercutiu em toda a imprensa, incluindo na fonte citada em meu último post, a revista Veja. No entanto, ela continha informações imprecisas e que levam a vários mal-entendidos, como explica abaixo, em carta-resposta publicada no mesmo jornal, no dia 20 de janeiro,o próprio Dr. Baron-Cohen. Leia a tradução em primeira mão:

cohen O artigo de vocês na primeira página do dia 12 de janeiro foi intitulado "Novas pesquisas trazem avaliação do autismo mais próxima à realidade", e o subtitulo "Chamada para o debate, já que testes uterinos poderiam permitir abortos". Mostrava a foto de um feto, à qual foi dada a  legenda "A descoberta de um alto nível de testosterona em testes pré-natais é um indicador de autismo", e dentro do jornal, um artigo de duas páginas foi devotado aos detalhes do estudo, e a ele foi dada a manchete "Transtorno ligado a altos níveis de testosterona no útero".

Todas essas quatro afirmações são imprecisas. A nova pesquisa não era sobre avaliação do autismo; a nova pesquisa não descobriu que um alto nível de testosterona em testes pré-natais é um indicador de autismo; transtornos do espectro autista não foram ligados a altos níveis de testosterona no útero; e testes (de autismo) no útero não permitem a descontinuação da gravidez.

Para ser justo com a repórter, Sarah Boseley, o conteúdo de seu artigo estava correto, em sua maior parte. Mas as manchetes e as legendas das fotos levaram a e-mails de centenas de pais de crianças com autismo, erroneamente acreditando que nossa pesquisa está sendo conduzida com um viés de querer exterminar crianças com autismo no útero — um exemplo sórdido e sinistro de eugenia ao qual meus co-autores e eu nos opomos.

O jornal "The Guardian" estava se baseando em nosso novo estudo publicado no British Journal of Psychology, que encontrou uma correlação entre os níveis de Testosterona Fetal (TF) e o número de traços autistas que uma criança demonstra com a idade de oito anos. O estudo não era sobre avaliação pré-natal para autismo, e, de fato, nem mesmo testou crianças com autismo.

O que ele fez foi testar 235 crianças com desenvolvimento típico, medindo sua TF (todos temos alguma) e mais tarde, medindo seus traços autistas. Traços autistas também são normais – é apenas uma questão de quantos destes você tem. Crianças com autismo têm um número maior de traços autistas, mas todas as nossas 235 crianças tinham desenvolvimento típico. O objetivo do estudo era simplesmente entender os mecanismos básicos que causam diferenças individuais em traços autísticos em uma amostra típica em outros aspectos.

Seu artigo cobriu dois tópicos diferentes: Nossa nova pesquisa, que tem como objetivo estudar as causas de diferenças individuais em crianças; e a avaliação pré-natal para autismo. Os dois assuntos deveriam ser mantidos separados. De fato, um estudo pré-natal do autismo teria requerido um delineamento inteiramente diferente.

Um tal estudo teria enfocado o autismo, o que o nosso não fez; e teria enfocado tópicos a respeito de o quão preciso seria o teste para detectar autismo, que tipo de autismo, quão específico seria o teste, ou se ele detectaria outros resultados.

Para constar, sobre a avaliação pré-natal do autismo, acredito que se houvesse um tal teste (e ainda não há), conquanto alguns pais possam exercer seu direito legal de optar por um aborto, eu não sou a favor de discriminar um feto porque ele possa desenvolver a condição.

 

O Professor Simon Baron-Cohen é diretor do Autism Research Centre, Cambridge University sb205@cam.ac.uk

Tradução: Alexandre Costa e Silva

Fonte: The Guardian

Um vídeo bastante interessante sobre saúde mental. Num mundo crescentemente “doente”, questiona o que é saúde. Ninguém mais parece questionar a verdade dos transtornos mentais, a maneira como são definidos e tratados. Às vezes ignoramos o fato de que certas mentiras são repetidas tantas vezes que se tornam “verdades”. Parece discurso de adolescente? Veja o vídeo. Pena que está em inglês.

Isso não significa que sou contra o uso de medicamentos, ou que não acredito que existam transtornos mentais. Apenas acredito que um conhecimento baseado no estudo exaustivo de como as pessoas fracassam motiva-as a atuar com base no medo. E toda atuação baseada no medo, na dúvida e na desinformação tem como resultado a confusão.

As formigas e a caneta – Uma história sufi

Um grupo de formigas subiu num papel escrito, e deu-se conta de que estava diante de algo novo e maravilhoso. Depois de caminhar uma eternidade de formiga, viram que algo imenso produzia os riscos azuis. Logo produziram-se teses e mais teses de como surgiam os riscos. Um grupo menor de formigas mais ousadas conseguiu pegar carona na ponta da caneta, e descobriu os dedos. Não sem baixas, um grupo menor ainda descobriu que os dedos ligavam-se a uma mão. apenas uma formiga mais tenaz descobriu os braços, o tronco e as pernas do escritor, desceu pelos seus pés e pôde mostrar a outras formigas por um caminho menos perigoso que o primeiro, como haviam sido produzidos os riscos. Milhares de teses foram escritas sobre a grande estrutura produtora de riscos.
As formigas, porém, precisamente por serem tão letradas, jamais poderiam descobrir o que estava sendo escrito…

Análise do Comportamento do Crioulo Doido

Crioulo Bom, embora doidoHá algum tempo, eu era freqüentador assíduo das rodas de debate do Orkut. Primeiro da Comunidade Análise do Comportamento, onde postei alguns tópicos que terminaram por ser bastante longos. Destes, o que mais me marcou foi “Pode um behaviorista ser religioso?“, que levou quase um ano para ser concluído, e valeu cada bit.Todos os que participaram foram tocados pela força das idéias do debate.

Alguns anos depois, acontecimentos de ordem extremamente pessoal me levaram a revisitar a obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Como todo hiperfoco meu, preciso ruminar as idéias intensamente, discuti-las com algém, reformulá-las, para então me reestabilizar e aplicá-las em meu trabalho. Como todos os que me lêem sabem, sou bastante avesso a Freud, Lacan e companhia. Considero-os personalidades históricas, que já exauriram seu poder de modificar a vida das pessoas, apesar de ainda haver fortes representantes deste pensamento, principalmente aqui, no Brasil, na França e na Argentina. Tirando nesses lugares, a psicanálise já foi expurgada até das universidades.

Bem, Jung nunca foi aceito pelas instituições acadêmicas, exceto talvez na suíça, e em seu tempo. E eu não sou o que se pode chamar de seguidor da academia sob nenhum aspecto. Me considero independente demais em pensamento para me submeter ao regime de leitura de um mestrado, por exemplo. À parte isso, gasto a maior parte de meu tempo livre lendo, e a maior parte de meu tempo de trabalho com psicologia clínica, em consultório.

Numa das conversas do Orkut, ainda na fase AC, um colega chegou a falar que eu fazia “Análise do Comportamento do Crioulo Doido”, afirmação essa que me machucou, na época, fazendo-me tecer longas justificativas de “pureza” comportamental e congêneres. Na verdade eu estava assimilando a Psicologia Comportamental, e meu modo de fazê-lo implica numa temporária “conversão”, para que eu possa ver o mundo daquela perspectiva, antes de tornar a vê-lo da minha própria, já imbuído daquele conhecimento. A partir daí é só atualização.

Já em minha fase de freqüentar a comunidade Junguiana que mais tem participantes no Orkut em português, a Comunidade Carl G. Jung Brasil, um participante chegou a ficar meio ranzinza com minha antropofagização de Jung, um sujeito especialmente dogmático, para quem faria bem a leitura de James Hillman, um maluco cuja leitura é deveras salutar para dogmáticos em remissão, como é (sempre, sempre) o meu caso. Ao voltar para o meu próprio eixo, depois de um passeio (longo) pela obra de Jung, revisito várias contribuições minhas (ex1, ex2) deixadas pela internet e penso: mas que jeito louco de aprender. O camarada que me tachou de Analista do Comportamento do Crioulo doido estava coberto de razão.

Um caso recentemente bem sucedido na clínica pode comprovar isto. Uma mulher de meia idade me procurou há algum tempo para psicoterapia, com diagnóstico prévio de síndrome do pânico, e longa história com diferentes psicofármacos, sempre com uma perda enorme de qualidade de vida. Seus objetos de pânico eram inescapáveis, pois eram imagens internas, não situações palpáveis. E eram imagens associadas a eventos naturais dos quais não se pode – sob nenhuma proteção – fugir ou evitar.Terra Girando

Um exemplo: o movimento da terra. Durante um documentário científico, como em vários programas televisivos, lá estava ela: gigantesca, girante, ameaçadora: a Terra. A primeira imagem apavorante havia sido aos treze anos, quando ela acordou em pleno pânico, imaginando ser enterrada viva. Estas imagens tinham teor persecutório, e persistência obssessiva.

Um componente bastante incômodo e deveras desmoralizante, para uma mulher de formação superior, e que se considera uma pessoa racional.

A primeira idéia que me ocorreu foi expô-la ao motivo atual de seu pânico, a imagem da terra. Iniciei com algumas sessões de apresentação, onde pesquisei a história pessoal para além de um simples histórico do sintoma, indo aos papéis desempenhados por ela ao longo da vida, como mãe, filha, esposa, profissional, etc, em busca de paralelos analógicos, lógicos e causais que me inspirassem um caminho de investigação da origem de seu sofrimento.

Após isso, comecei uma aproximação sucessiva à imagem mais apavorante: o girar inexorável da terra no espaço. Comecei com um imagens pouco definidas, desenhadas, às quais quase não houve reação fisiológica mensurável (por ela) relatada. As imagens eram projetadas na parede por um equipamento multimídia acoplado ao meu notebook.

Até aí Analista high-tech do comportamento, normalmente nerd, como tantos que eu conhecera mundo afora. Tecnologia a serviço do bem-estar. E cadê o Crioulo? Apareceu na costura simbólica que começamos a realizar durante a exposição, que eu pretendia que fosse casual, ao longo das conversas, terminando com de quinze a vinte minutos de técnicas respiratórias e de relaxamento.

Fui tornando as imagens mais reais e, conseqüentemente, ameaçadoras para a cliente. Paralelamente, investigamos sua relação complicada com a mãe (ops – terra – gaia – mãe! olha o crioulo aí!) e sua primeira manifestação de pânico (ser enterrada viva – recolhida ao útero da terra – mãe de novo). Ela começou a falar da mãe espontaneamente, sem nenhuma alusão da minha parte ao mito de Gaia.

Fiz essa alusão numa amplificação[1] posterior (olha o crioulo aí novamente!). A família tem mulheres muito longevas e minha paciente temia viver muito (bem como ser enterrada viva). O destino das mulheres mais velhas da família é, tradicionalmente, ficar sem casar, cuidando da mãe. A mãe sempre lhe preparou para este destino, desencorajando seu interesse pelos estudos (que foi precoce) e tratando-a com uma severidade anacrônica para as pessoas da sua geração, como ainda se vê em algumas famílias no interior do Ceará.

Uma vez, no início da sessão, ela mencionou que a mãe costumava acordá-la com uma forte pancada nos punhos da rede em que dormia. Ao longo da descrição de seus padecimentos da semana, deteve-se em um dia em que acordou sobressaltada com a imagem da terra assombrando-lhe os pensamentos. Intervi: “Como se alguém lhe batesse com força nos punhos da rede?” (Ah, crioulo!)

Enquanto viajávamos nos desvãos das comparações análogas, a figura da terra ganhou animação, e girava ameaçadora e gigantesca na parede da sala. O resultado desse samba foi bastante compensador – para a cliente e para mim. O pânico começou a remitir. A medicação foi ajustada para de 20mg para 40mg de paroxetina em um episódio de depressão esporádico (apenas 40) e – shazan! menos de um ano de terapia e apenas sensações vestigiais ao amanhecer e ao entardecer (momentos em que se percebe melhor a movimentação da terra).

Pura crioulagem: a paciente fez, através do ato cognitivo, um distanciamento do arquétipo da grande mãe, ativado em seu aspecto mais ameaçador, cuja função era puni-la por haver saído de casa, contrariando a expectativa da mãe e a tradição da família. A aproximação sucessiva teve o efeito de uma medicação natural – homeopática, se pensarmos no similis similibus curantur[2]. Assim, as sessões dessa paciente estão em regime quinzenal, em manutenção. Conheço analistas do comportamentos puristas que ficariam consternados[3] com essa minha viagem pela psicologia analítica, e psicólogos junguianos (embora nem todos) que achariam a técnica de exposição “fast food” demais para suas ambições de exploradores das “profundezas” da psique.

Claro que poderia perfeitamente traçar uma descrição analítico-comportamental “pura” para todos os episódios: A punição recorrente da mãe como causadora de stress e a predisposição ao pânico, aprendida filogeneticamente (ou seja, herdada). Mas isso deixaria Gaia de fora, com seu útero devorador.

Ah, e para quê Gaia? Fez um enorme sentido, deixou-nos mudos, eu e a paciente, pensando nos mistérios entre os céus e a terra insuspeitados pelo meu vão pragmatismo…

Para os behavioristas, parafrasearia meu colega: sou um crioulo doido, até me identifico um bocado com o pragmatismo behaviorista, mas, perdoem-me, esta não é minha religião. E para os Junguianos poderia dizer, junto com Jung: “ainda bem que não tenho que ser junguiano”.

A melhor declaração vai para minha paciente: traga-me sua dor, e eu percorrerei os vales e montanhas de seu sofrimento a seu lado, usando qualquer conhecimento que eu tenha em seu benefício. Um crioulo doido não tem que escolher entre o alívio sintomático, a análise funcional e a análise dos símbolos: ele faz tudo junto, se o resultado é bom.

[1] A amplificação é uma técnica desenvolvida por Jung que envolve o uso de paralelismo míticos, históricos e culturais a fim de esclarecer e ampliar o conteúdo metafórico do simbolismo onírico.
[2] “similis similibus curantur” – princípio da medicina homeopática: semelhante cura semelhante.
[3] Citando GUILHARDI In Bernard Rangé (org.) Psicoterapia comportamental e cognitiva de transtornos psiquiátricos: O ecletismo teórico representa portanto, um exemplo de comportamento de fuga-esquiva que afasta o terapeuta comportamental do seu papel mais genuíno: trazer para a situação prática a proposta conceitual skinneriana de como lidar com os fenômenos internos. Uma proposta teórica só pode ser criticada e desenvolvida a partir do seu próprio referencial, isto é, o behaviorismo radical só pode crescer e se rever com o engajamento por parte de seus adeptos, na pesquisa e na reflexão crítica sobre seus conceitos. De nada adianta para o desenvolvimento de um corpo sistemático de conhecimentos a debandada para outras propostas teóricas, conceituais e práticas. Perde a abordagem, perde a Psicologia. Branch (1987) fez uma distinção útil entre ecletismo teórico (este inaceitável, já que uma posição teórica eclética equivale a ter os pés firmemente apoiados no ar…) e ecletismo tecnológico. Ecletismo pode parecer sedutor, mesmo parecer um exemplo de “mente aberta”, mas é inócuo. “O desenvolvimento e a compreensão de uma posição teórica é uma tarefa árdua. mas é exatamente esse esforço que leva ao avanço científico (e portanto, tecnológico). Ter uma visão unificada promove consistência por parte do terapeuta e permite teste e refinamento (ou até mesmo abandono) de sua visão com a progressiva experiência. Assumir uma posição teórica faz com que o terapeuta se torne um participante pleno da empreitada a que chamamos ciência” (Branch, 1987). (Os grifos em negrito são meus)

Neurodiversidade e Aniversários

Ontem fui convidado para uma festa de aniversário, em que uma pessoa muito importante faltou: o próprio aniversariante.

Adivinhou: o sujeito em questão está no espectro autístico.

Ligou para reiterar o convite, mais cedo, e ficou do outro lado da linha:

— Ei!

— Alô, como vai, amigo? — eu respondi.

–Oi!

— Pode falar, o que você deseja?

— Hein!

— Imagino que queira reiterar o convite para o seu aniversário.

–É. Fale aqui com ela. — e passou o telefone para a mãe.

A mãe reiterou o convite. Na hora do aniversário, os amigos da Casa da Esperança estavam, alguns professores mais queridos, o jantar estava ótimo. Só faltava o aniversariante.

Segundo a sua irmã, ele ficou ansioso para preparar a festa, mas as horas foram passando, e a ansiedade chegou em um pico tal que ele exclamou:

–Eu é que não vou ficar nesta festa!

Calculou que a festa já estaria terminada às dez horas, ou cansou de ficar na rua. Cálculo errado, hora de descansar adiada: ainda estávamos lá. Detalhe: a festa foi realizada a pedido seu.

De tudo me fica apenas a impressão de que a maior homenagem ao aniversariante foi permitir que ele curtisse a sua festa a seu modo: oferecendo aos amigos um banquete no qual ele não estaria presente. E ainda teve espaço para quinze minutos finais em que deu o ar da sua presença, felicitando a todos, e agradecendo a presença.

Isso é que é sociabilidade!

Crianças Roubadas

Uma remitologização do conto dos “Changelings” dos Irmãos Grimm

Há uma lenda oriunda da região setentrional da Europa, uma vasta região da Escócia à Irlanda, e da Normandia à Suécia, sobre os chamados changelings, ou crianças trocadas. O changeling é  normalmente, nas várias versões da história, a progênie de uma fada, de um troll, de um elfo, ou de outra criatura lendária, que é deixada secretamente no lugar de uma criança humana.

Em tudo se lhe assemelha, exceto em temperamento. Os pais, vendo alteração física nenhuma, não percebem de imediato a troca. Os seres lendários que perpetram esse ato estão motivados, quer pelo desejo de ter um servo humano, ou o amor de uma criança humana (já que sua própria progenie não tem capacidade de amar como um ser humano), ou mesmo por pura malícia.

De acordo a algumas lendas, é possível detectar changelings, porque são mais sábios que crianças humanas. Quando a troca é percebida a tempo, os pais devem devolver a criança aos seres que a deixaram lá, de modo a receber a sua de volta.

Algumas lendas consideram um castigo para os pais, essa traquinagem dos seres lendários. Falam que são levadas as crianças não batizadas, ou aquelas cujos pais cometeram algum pecado antes de seu nascimento.

Em algumas versões da lenda, a criança changeling é fisicamente deformada, tem a pele rugosa, temperamento malicioso, apetite voraz, entre outras características, sempre negativas.

Esse mito já foi usado muitas vezes com referência a crianças deficientes, incluindo autistas. Mas o propósito de tomá-lo aqui é desconstruí-lo, de modo que ele evoque uma resposta mais positiva do que a resposta medieval à criança “changeling”, porque faz todo o sentido do mundo que este mito seja não mais que a busca coletiva de sentido a respeito da dura realidade da quebra de expectativas, quando se recebe uma criança deficiente em geral, e em particular, de maneira até mais radicalmente dolorosa, quando se recebe uma criança com autismo.

Autistas parecem emocionalmente distantes, “totalmente outros”, bizarros. O estranhamento que provocam é mais danoso para o relacionamento familiar do que a descoberta de outras deficiências mais óbvias.

O núcleo arquetípico da lenda descreve com precisão o sentimento de estranheza e luto vivido pelos pais quando percebem que a criança que esperavam e imaginavam — seja o que quer que imaginavam ou queriam — não corresponde a sua expectativa, é uma criança “fria”, “distante”, “incapaz de amar” e outros epítetos que a ignorância dá aos autistas.

Não conhecer o ponto de vista dessa progênie lendária, élfica, fabulosa, leva a uma dor incomensurável, uma dor calcada na forma com que se imagina a própria história, como uma perda.

Vamos aqui tentar recontar essa história com foco não na criança que nos foi levada, mas da perspectiva dos — vamos assumir que sejam elfos — que as levaram, uma perspectiva certamente próxima, senão a mesma — das crianças “changeling”.

Dessa perspectiva, não há sortilégios que nos possam trazê-la de volta. Desde os Irmãos Grimm — que relatam o sucesso de ferver água na casca de um ovo para fazer rir o “changeling” — Até as buscas modernas da cura, pela evitação de vacina, por dietas obscuras, alguns pais tentam desesperadamente trazer os filhos normais de volta.

No reino dos elfos, o reino do mito e da fantasia, não há o que provar, não se trata de ciência, mas do próprio núcleo da vida. E este é composto das muitas histórias que contamos e ouvimos, a respeito de nós mesmos.

Histórias não só dão sentido a vida, como tornam-se esse próprio sentido. A vida, de uma perspectiva exclusivamente científica e materialista, perderia seu sabor, como tem perdido. Os elfos sentem-se alheios a esse mundo cego, e regido pelo acaso.

As histórias são espelhos dinâmicos: vemo-nos nelas, e as mudamos com nossa imagem, e assim, sucessivamente, vamos criando a nós próprios, como indivíduos e como sociedade.

É necessária uma remitologização que atenda aos anseios dos indivíduos “changeling”, que não contam sobre si essa história — que é de acalanto parental, não infantil — pois nela eles são tratados como estranhos e desprezados, apesar da sabedoria que possuem (e que está também representada nos contos).

As pessoas temem o desconhecido, num misoneísmo que pode até ser assassino, como em algumas culturas tribais, e mais próximo da “civilização” do que poderiam querer os seres humanos auto-proclamados “civilizados”. Jim Sinclair é uma das vozes da cultura “changeling” emergente. Temple Grandin também.

Os elfos que nos roubaram essas crianças estavam cumprindo um destino que nos faz melhores, pela convivência entre os povos, humanos e elfos. Não poderiam aparecer e propor a troca, algo que o tão conhecido misoneísmo da espécie humana impediria. Talvez até os matássemos, como fizemos com Sócrates, Jesus e tantos outros. Como são mais sábios que nós, sabiam que toda a coisa seria mutuamente recompensadora.

Todos aqueles que ensinam sortilégios para banir os “changelings” e devolvê-los a seus pais biológicos estão errados. Eles conseguem apenas, quando muito,  forçar os “changeling” a fingirem ser as crianças roubadas, sofrendo com isso o amargor de considerarem-se eternamente inadequados. Elfos crescidos entre humanos, parte de um povo nobre, sábio, senhores de seu tempo.

O relógio progressivo e acelerado dos humanos não lhes interessa; vivem num tempo outro, vendo coisas que não vemos, apontando para nós em recantos que não conhecíamos. Para isso estão aqui. Para isso foram deixados.
E as crianças roubadas?

Por mais sábios que sejam, os Elfos têm o que aprender. Por mais misoneístas e violentos que sejamos, espalhando nosso próprio sangue aos quatro cantos da Terra, desenvolvemos um saber que os elfos querem desesperadamente. Sabemos trocar. Para nós é pouco, fazemos isso como respiramos. Mas eles querem aprender. Falamos de modos invisíveis para eles, quase telepaticamente. Nos tocamos, nos beijamos. Nossa capacidade de amar é quase tão grande quanto nosso poder de destruir. E isso encanta os Elfos, que sabem muito bem que não se pode condenar toda uma gente pelos excessos cometidos por alguns, e têm uma grande esperança na humanidade.

Bem, amigos, agora vocês sabem a verdade. Comecei com esse blá-blá-blá científico apenas para vocês lerem até o fim. Agora que estamos no terreno real, o terreno do mito, posso perguntar a vocês: Que acham de aceitarmos o presente dos Elfos? Nossa criança roubada deve estar ensinando coisas maravilhosas no mundo da fábula. Aprendamos com o elfo que temos para cuidar e amar! Se ficarmos eternamente chorando pelo filho que não veio, perderemos a oportunidade de construir um futuro no qual Elfos e humanos, vivendo juntos às claras como ainda não pode ser, inaugurarão tempos de tolerância como jamais se viu, na história dessa planeta: E ainda menos, no tempo dos irmãos Grimm.

Rádio Autismo

Foi criado o novo espaço para a divulgação de material sobre autismo, através de palestras, e programas de áudio criados por e para pessoas autistas, seus amigos e familiares, em português. Clique no link abaixo, e fique antenado com as notícias e comentários sobre autismo da Casa da Esperança.

Visite e ouça on-line clicando aqui

Clique aqui para assinar