Toda Psicoterapia Bem sucedida é um encontro com Deus

Se você é cético, ou ateu (estas palavras têm sido usadas como sinônimos ultimamente), não pare tão cedo de ler este artigo. Ele não exclui você, seja como paciente, seja como psicoterapeuta.

Há mais de cem anos, quando Freud começou a escrever sobre sexualidade, o tema era tabu entre o meio acadêmico e científico. Hoje os terapeutas — e a sociedade leiga em geral — tratam do tema com naturalidade. Mas cada época tem seus tabus. Curiosamente, para um deísta como eu, o tabu acadêmico da nossa época é a espiritualidade, ou religiosidade, sejam quais forem as formas que assumem nas várias culturas humanas.

A maioria dos psicoterapeutas evita o tema, temeroso seja da ridicularização de seus pares, seja das implicações para a saúde mental de seus pacientes. Este medo, permitam-me dizer, graças a Deus, está diminuindo. Este ano, o Congresso Brasileiro de Psiquiatria tratou do tema extensamente, atraindo um público de cerca de 800 pessoas, num auditório que excedeu sua capacidade máxima.

A estrela principal deste ramo do evento foi Kenneth Pargament, um Judeu americano que tem idéias extraordinárias sobre a integração da espiritualidade na prática terapêutica.

Seu livro Spiritually Integrated Psychotherapy: Understanding and Addressing the Sacred [link afiliado], cuja versão eletrônica adquiri antes mesmo do final da palestra, trata do tema de uma maneira universalista, cosmopolita e inclusiva.

Não, ele não tenta provar a existência de Deus, ou da vida após a morte. Sua abordagem é mais pragmática do que isso. O que ele diz é que todo ser humano, seja ele deísta ou não, tem alguma atividade que faz o seu coração cantar. E que é de lá que — para os deístas — brota a experiência do Sagrado.

Jacob Levy Moreno, outro judeu, o criador da psicoterapia de grupo e do Psicodrama, dizia algo semelhante em meados do século passado. Ele referia-se ao encontro, uma “experiência de pico”, como a chamam os psicólogos existencialistas cristãos do século passado, na esteira de Abraham Maslow, mais conhecido por sua formulação da hierarquia das necessidades humanas.

Moreno afirmava que uma pessoa só encontra a si mesma e à sua vocação essencial quando consegue “jogar o papel de Deus”. Eu faço coro com ele e com Pargament, quando afirmam que Deus é mais do que um conceito inventado pelo homem para aliviar as dores da consciência da mortalidade. Algo que supostamente — pois até agora não houve comunicação fluente com nenhum animal para sabermos se eles a possuem — é distintamente humano.

Sou um muçulmano esotérico. Um dervixe, se quiser. Os nomes não importam. Para mim, Deus é mais do que um conceito, ou vários, se levarmos em conta a quantidade de atributos que a Ele impingem as várias culturas, em todos os continentes onde a humanidade marcou presença. Para mim Deus é simplesmente incognoscível. Ele não pode ser pensado. Ele não pode ser descrito, senão por aproximação, por analogia. Por isso todos os livros sagrados do mundo contam histórias, e recitam poemas.

Não acredito em Deus. Eu o experimento em mim e em minha interface com os meus, com pacientes, amigos, com a mulher da minha vida. Deus está em tudo e para além de tudo, o paradoxo no centro do qual tento desenhar o meu futuro, e o futuro das vidas que toco com a minha.

Sendo assim, uma das primeiras perguntas que faço a qualquer paciente tende a ser: “você tem religião?”. Isso vai pautar meu diálogo com o paciente daí por diante. Minha abordagem é muito semelhante à que vi em Pargament, e que aprendi com Moreno e os Mestres do Silsilah da Tradição Sufi. “Fale às pessoas de acordo com seu entendimento”, é o conselho do Profeta Muhammad.

Cada ser humano é um livro sendo escrito, mas nem sempre por ele mesmo. E mesmo não sendo ele o escritor, ele é o protagonista, de sua própria perspectiva. A psicoterapia é um esforço na direção de empoderá-lo como escritor. Ele me conta o que foi escrito do livro até agora, e eu o ajudo a desenhar futuros possíveis, com as tintas do presente, para onde o passado lhe trouxe.

Assim, meu papel como terapeuta é facilitar o diálogo do paciente com Deus,não a partir da minha experiência de Deus, mas da do paciente.

“Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.
E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus;
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos
E tu ver-me-às com os meus.”

Jacob Levy Moreno, “Divisa

Ver o paciente com seus próprios olhos é o passo mais difícil no caminho de aprendizagem de um terapeuta. Vê-lo da maneira que ele se vê e, ao mesmo tempo, enquanto se vai acumulando familiaridade com suas histórias, ir introduzindo uma generosidade neste viés, um senso de redenção, de que ele pode ser melhor, de que ele pode dançar seguindo a música que seu coração toca.

A vida é essa dança, este kabuki, este teatro espontâneo em que escrevemos o roteiro em conjunto com o imponderável. E este imponderável é que eu chamo de Deus. Você, caro leitor, pode chamá-lo do que quiser.

A Bíblia Cristã tem um detalhe primoroso, logo no início, que sugere essa universalidade do sagrado. Diz o Gênesis:

“24 E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi.

25 E fez Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.

26 E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.”

(O grifo é meu)

Deus usa o singular em cada momento da criação, mas quando vai criar o homem, diz: Façamos o homem. Façamo-lo quem, senão Deus mesmo, o insondável, o incognoscível, o imponderável, junto com aquela pequena criatura de barro, uma vez que estava só enquanto a moldava? Este trecho é um convite. Ele diz o equivalente a “façamos a ti juntos, eu e tu”. E à Sua semelhança, não significa que Deus tem forma humana. Significa que ele outorga a nós, essas pequenas criaturas cheias de vícios mundanos, pequenas e grandes distorções na maneira como nos vemos e ao mundo, sua faculdade criativa.

Criamos a nós mesmos, junto com Deus, este é o convite e o desafio. No Alcorão, Deus oferece a liberdade aos céus, à terra e às montanhas, que a recusaram, enquanto o ser humano se encarregou de aceitar-lhe o fardo.

“Por certo que apresentamos a custódia aos céus (1297) terra e às montanhas, que se negaram e temeram recebê-la; porém, o homem se encarregou disso(…)”

O Nobre Alcorão, sura Al Ahzab (Os Partidos), versículo 74.

É essa liberdade, o objetivo de toda psicoterapia. A liberdade de ser co-criador do próprio destino, de escrever, junto com o imponderável, o livro da sua própria vida.

Este tema é universal, não é específico de uma religião ou outra. A liberdade traz embutida em si o fardo da responsabilidade, ou “custódia” como diz a tradução do Alcorão acima.

Deste modo, toda psicoterapia bem sucedida, produz um ser humano mais livre, creia ele ou não num Ser Supremo, seja ele criacionista ou evolucionista, ateu ou deísta. Ela o ajuda a ser uma pessoa capaz de fazer escolhas, e arcar com as consequências.

A experiência do Sagrado não é privilégio dos deístas. Ela é uma dádiva divina, e uma conquista humana, simultaneamente. O que faz o seu coração cantar? Que atividade faz seus olhos brilharem, faz você se sentir alegre como uma criança, ou como um dervixe bem sucedido?

Este serviço essencial, esta atividade, é aquela que te faz ficar absorto, horas a fio, se for preciso, e ela te liberta. É na descoberta e no exercício dessa liberdade que reside uma psicoterapia bem sucedida. E é a partir desta morada interior dentro da sua pele, em algum lugar do seu cérebro, neste jardim secreto no qual toca a música do seu coração que mora a sua conexão com Deus. Ou consigo mesmo, se você quiser.

Aquilo que se faz com alegria e amor é sagrado, não importa quão irrelevante, ou profano pareça ser, não importa o quão distante da sua idéia de espiritualidade possa estar.

A verdadeira espiritualidade resume-se a você ser cada vez mais quem é, escrevendo seu futuro com as tintas da experiência. Cada um de nós pode ser pleno ao realizar a tarefa que ao profeta Muhammad fez o anjo Gabriel:

“Recita em nome de Deus que te criou, que criou o homem de um coágulo, e ensinou-lhe com a pena o que ele não sabia”.

Uma psicoterapia bem sucedida põe a pena nas mãos do paciente, e o ensina a desenhar o seu futuro ao som da música que toca no jardim secreto de seu ser essencial. E deste modo, uma pessoa encontra Deus, que está pouco se lixando se você acredita ou não nele…

Originalmente escrito por Alexandre Costa e Silva

Florianópolis, sábado, 07 de novembro de 2015, 02:37am

As formigas e a caneta – Uma história sufi

Um grupo de formigas subiu num papel escrito, e deu-se conta de que estava diante de algo novo e maravilhoso. Depois de caminhar uma eternidade de formiga, viram que algo imenso produzia os riscos azuis. Logo produziram-se teses e mais teses de como surgiam os riscos. Um grupo menor de formigas mais ousadas conseguiu pegar carona na ponta da caneta, e descobriu os dedos. Não sem baixas, um grupo menor ainda descobriu que os dedos ligavam-se a uma mão. apenas uma formiga mais tenaz descobriu os braços, o tronco e as pernas do escritor, desceu pelos seus pés e pôde mostrar a outras formigas por um caminho menos perigoso que o primeiro, como haviam sido produzidos os riscos. Milhares de teses foram escritas sobre a grande estrutura produtora de riscos.
As formigas, porém, precisamente por serem tão letradas, jamais poderiam descobrir o que estava sendo escrito…

Crianças Roubadas

Uma remitologização do conto dos “Changelings” dos Irmãos Grimm

Há uma lenda oriunda da região setentrional da Europa, uma vasta região da Escócia à Irlanda, e da Normandia à Suécia, sobre os chamados changelings, ou crianças trocadas. O changeling é  normalmente, nas várias versões da história, a progênie de uma fada, de um troll, de um elfo, ou de outra criatura lendária, que é deixada secretamente no lugar de uma criança humana.

Em tudo se lhe assemelha, exceto em temperamento. Os pais, vendo alteração física nenhuma, não percebem de imediato a troca. Os seres lendários que perpetram esse ato estão motivados, quer pelo desejo de ter um servo humano, ou o amor de uma criança humana (já que sua própria progenie não tem capacidade de amar como um ser humano), ou mesmo por pura malícia.

De acordo a algumas lendas, é possível detectar changelings, porque são mais sábios que crianças humanas. Quando a troca é percebida a tempo, os pais devem devolver a criança aos seres que a deixaram lá, de modo a receber a sua de volta.

Algumas lendas consideram um castigo para os pais, essa traquinagem dos seres lendários. Falam que são levadas as crianças não batizadas, ou aquelas cujos pais cometeram algum pecado antes de seu nascimento.

Em algumas versões da lenda, a criança changeling é fisicamente deformada, tem a pele rugosa, temperamento malicioso, apetite voraz, entre outras características, sempre negativas.

Esse mito já foi usado muitas vezes com referência a crianças deficientes, incluindo autistas. Mas o propósito de tomá-lo aqui é desconstruí-lo, de modo que ele evoque uma resposta mais positiva do que a resposta medieval à criança “changeling”, porque faz todo o sentido do mundo que este mito seja não mais que a busca coletiva de sentido a respeito da dura realidade da quebra de expectativas, quando se recebe uma criança deficiente em geral, e em particular, de maneira até mais radicalmente dolorosa, quando se recebe uma criança com autismo.

Autistas parecem emocionalmente distantes, “totalmente outros”, bizarros. O estranhamento que provocam é mais danoso para o relacionamento familiar do que a descoberta de outras deficiências mais óbvias.

O núcleo arquetípico da lenda descreve com precisão o sentimento de estranheza e luto vivido pelos pais quando percebem que a criança que esperavam e imaginavam — seja o que quer que imaginavam ou queriam — não corresponde a sua expectativa, é uma criança “fria”, “distante”, “incapaz de amar” e outros epítetos que a ignorância dá aos autistas.

Não conhecer o ponto de vista dessa progênie lendária, élfica, fabulosa, leva a uma dor incomensurável, uma dor calcada na forma com que se imagina a própria história, como uma perda.

Vamos aqui tentar recontar essa história com foco não na criança que nos foi levada, mas da perspectiva dos — vamos assumir que sejam elfos — que as levaram, uma perspectiva certamente próxima, senão a mesma — das crianças “changeling”.

Dessa perspectiva, não há sortilégios que nos possam trazê-la de volta. Desde os Irmãos Grimm — que relatam o sucesso de ferver água na casca de um ovo para fazer rir o “changeling” — Até as buscas modernas da cura, pela evitação de vacina, por dietas obscuras, alguns pais tentam desesperadamente trazer os filhos normais de volta.

No reino dos elfos, o reino do mito e da fantasia, não há o que provar, não se trata de ciência, mas do próprio núcleo da vida. E este é composto das muitas histórias que contamos e ouvimos, a respeito de nós mesmos.

Histórias não só dão sentido a vida, como tornam-se esse próprio sentido. A vida, de uma perspectiva exclusivamente científica e materialista, perderia seu sabor, como tem perdido. Os elfos sentem-se alheios a esse mundo cego, e regido pelo acaso.

As histórias são espelhos dinâmicos: vemo-nos nelas, e as mudamos com nossa imagem, e assim, sucessivamente, vamos criando a nós próprios, como indivíduos e como sociedade.

É necessária uma remitologização que atenda aos anseios dos indivíduos “changeling”, que não contam sobre si essa história — que é de acalanto parental, não infantil — pois nela eles são tratados como estranhos e desprezados, apesar da sabedoria que possuem (e que está também representada nos contos).

As pessoas temem o desconhecido, num misoneísmo que pode até ser assassino, como em algumas culturas tribais, e mais próximo da “civilização” do que poderiam querer os seres humanos auto-proclamados “civilizados”. Jim Sinclair é uma das vozes da cultura “changeling” emergente. Temple Grandin também.

Os elfos que nos roubaram essas crianças estavam cumprindo um destino que nos faz melhores, pela convivência entre os povos, humanos e elfos. Não poderiam aparecer e propor a troca, algo que o tão conhecido misoneísmo da espécie humana impediria. Talvez até os matássemos, como fizemos com Sócrates, Jesus e tantos outros. Como são mais sábios que nós, sabiam que toda a coisa seria mutuamente recompensadora.

Todos aqueles que ensinam sortilégios para banir os “changelings” e devolvê-los a seus pais biológicos estão errados. Eles conseguem apenas, quando muito,  forçar os “changeling” a fingirem ser as crianças roubadas, sofrendo com isso o amargor de considerarem-se eternamente inadequados. Elfos crescidos entre humanos, parte de um povo nobre, sábio, senhores de seu tempo.

O relógio progressivo e acelerado dos humanos não lhes interessa; vivem num tempo outro, vendo coisas que não vemos, apontando para nós em recantos que não conhecíamos. Para isso estão aqui. Para isso foram deixados.
E as crianças roubadas?

Por mais sábios que sejam, os Elfos têm o que aprender. Por mais misoneístas e violentos que sejamos, espalhando nosso próprio sangue aos quatro cantos da Terra, desenvolvemos um saber que os elfos querem desesperadamente. Sabemos trocar. Para nós é pouco, fazemos isso como respiramos. Mas eles querem aprender. Falamos de modos invisíveis para eles, quase telepaticamente. Nos tocamos, nos beijamos. Nossa capacidade de amar é quase tão grande quanto nosso poder de destruir. E isso encanta os Elfos, que sabem muito bem que não se pode condenar toda uma gente pelos excessos cometidos por alguns, e têm uma grande esperança na humanidade.

Bem, amigos, agora vocês sabem a verdade. Comecei com esse blá-blá-blá científico apenas para vocês lerem até o fim. Agora que estamos no terreno real, o terreno do mito, posso perguntar a vocês: Que acham de aceitarmos o presente dos Elfos? Nossa criança roubada deve estar ensinando coisas maravilhosas no mundo da fábula. Aprendamos com o elfo que temos para cuidar e amar! Se ficarmos eternamente chorando pelo filho que não veio, perderemos a oportunidade de construir um futuro no qual Elfos e humanos, vivendo juntos às claras como ainda não pode ser, inaugurarão tempos de tolerância como jamais se viu, na história dessa planeta: E ainda menos, no tempo dos irmãos Grimm.