Há algum tempo, eu era freqüentador assíduo das rodas de debate do Orkut. Primeiro da Comunidade Análise do Comportamento, onde postei alguns tópicos que terminaram por ser bastante longos. Destes, o que mais me marcou foi “Pode um behaviorista ser religioso?“, que levou quase um ano para ser concluído, e valeu cada bit.Todos os que participaram foram tocados pela força das idéias do debate.
Alguns anos depois, acontecimentos de ordem extremamente pessoal me levaram a revisitar a obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Como todo hiperfoco meu, preciso ruminar as idéias intensamente, discuti-las com algém, reformulá-las, para então me reestabilizar e aplicá-las em meu trabalho. Como todos os que me lêem sabem, sou bastante avesso a Freud, Lacan e companhia. Considero-os personalidades históricas, que já exauriram seu poder de modificar a vida das pessoas, apesar de ainda haver fortes representantes deste pensamento, principalmente aqui, no Brasil, na França e na Argentina. Tirando nesses lugares, a psicanálise já foi expurgada até das universidades.
Bem, Jung nunca foi aceito pelas instituições acadêmicas, exceto talvez na suíça, e em seu tempo. E eu não sou o que se pode chamar de seguidor da academia sob nenhum aspecto. Me considero independente demais em pensamento para me submeter ao regime de leitura de um mestrado, por exemplo. À parte isso, gasto a maior parte de meu tempo livre lendo, e a maior parte de meu tempo de trabalho com psicologia clínica, em consultório.
Numa das conversas do Orkut, ainda na fase AC, um colega chegou a falar que eu fazia “Análise do Comportamento do Crioulo Doido”, afirmação essa que me machucou, na época, fazendo-me tecer longas justificativas de “pureza” comportamental e congêneres. Na verdade eu estava assimilando a Psicologia Comportamental, e meu modo de fazê-lo implica numa temporária “conversão”, para que eu possa ver o mundo daquela perspectiva, antes de tornar a vê-lo da minha própria, já imbuído daquele conhecimento. A partir daí é só atualização.
Já em minha fase de freqüentar a comunidade Junguiana que mais tem participantes no Orkut em português, a Comunidade Carl G. Jung Brasil, um participante chegou a ficar meio ranzinza com minha antropofagização de Jung, um sujeito especialmente dogmático, para quem faria bem a leitura de James Hillman, um maluco cuja leitura é deveras salutar para dogmáticos em remissão, como é (sempre, sempre) o meu caso. Ao voltar para o meu próprio eixo, depois de um passeio (longo) pela obra de Jung, revisito várias contribuições minhas (ex1, ex2) deixadas pela internet e penso: mas que jeito louco de aprender. O camarada que me tachou de Analista do Comportamento do Crioulo doido estava coberto de razão.
Um caso recentemente bem sucedido na clínica pode comprovar isto. Uma mulher de meia idade me procurou há algum tempo para psicoterapia, com diagnóstico prévio de síndrome do pânico, e longa história com diferentes psicofármacos, sempre com uma perda enorme de qualidade de vida. Seus objetos de pânico eram inescapáveis, pois eram imagens internas, não situações palpáveis. E eram imagens associadas a eventos naturais dos quais não se pode – sob nenhuma proteção – fugir ou evitar.
Um exemplo: o movimento da terra. Durante um documentário científico, como em vários programas televisivos, lá estava ela: gigantesca, girante, ameaçadora: a Terra. A primeira imagem apavorante havia sido aos treze anos, quando ela acordou em pleno pânico, imaginando ser enterrada viva. Estas imagens tinham teor persecutório, e persistência obssessiva.
Um componente bastante incômodo e deveras desmoralizante, para uma mulher de formação superior, e que se considera uma pessoa racional.
A primeira idéia que me ocorreu foi expô-la ao motivo atual de seu pânico, a imagem da terra. Iniciei com algumas sessões de apresentação, onde pesquisei a história pessoal para além de um simples histórico do sintoma, indo aos papéis desempenhados por ela ao longo da vida, como mãe, filha, esposa, profissional, etc, em busca de paralelos analógicos, lógicos e causais que me inspirassem um caminho de investigação da origem de seu sofrimento.
Após isso, comecei uma aproximação sucessiva à imagem mais apavorante: o girar inexorável da terra no espaço. Comecei com um imagens pouco definidas, desenhadas, às quais quase não houve reação fisiológica mensurável (por ela) relatada. As imagens eram projetadas na parede por um equipamento multimídia acoplado ao meu notebook.
Até aí Analista high-tech do comportamento, normalmente nerd, como tantos que eu conhecera mundo afora. Tecnologia a serviço do bem-estar. E cadê o Crioulo? Apareceu na costura simbólica que começamos a realizar durante a exposição, que eu pretendia que fosse casual, ao longo das conversas, terminando com de quinze a vinte minutos de técnicas respiratórias e de relaxamento.
Fui tornando as imagens mais reais e, conseqüentemente, ameaçadoras para a cliente. Paralelamente, investigamos sua relação complicada com a mãe (ops – terra – gaia – mãe! olha o crioulo aí!) e sua primeira manifestação de pânico (ser enterrada viva – recolhida ao útero da terra – mãe de novo). Ela começou a falar da mãe espontaneamente, sem nenhuma alusão da minha parte ao mito de Gaia.
Fiz essa alusão numa amplificação[1] posterior (olha o crioulo aí novamente!). A família tem mulheres muito longevas e minha paciente temia viver muito (bem como ser enterrada viva). O destino das mulheres mais velhas da família é, tradicionalmente, ficar sem casar, cuidando da mãe. A mãe sempre lhe preparou para este destino, desencorajando seu interesse pelos estudos (que foi precoce) e tratando-a com uma severidade anacrônica para as pessoas da sua geração, como ainda se vê em algumas famílias no interior do Ceará.
Uma vez, no início da sessão, ela mencionou que a mãe costumava acordá-la com uma forte pancada nos punhos da rede em que dormia. Ao longo da descrição de seus padecimentos da semana, deteve-se em um dia em que acordou sobressaltada com a imagem da terra assombrando-lhe os pensamentos. Intervi: “Como se alguém lhe batesse com força nos punhos da rede?” (Ah, crioulo!)
Enquanto viajávamos nos desvãos das comparações análogas, a figura da terra ganhou animação, e girava ameaçadora e gigantesca na parede da sala. O resultado desse samba foi bastante compensador – para a cliente e para mim. O pânico começou a remitir. A medicação foi ajustada para de 20mg para 40mg de paroxetina em um episódio de depressão esporádico (apenas 40) e – shazan! menos de um ano de terapia e apenas sensações vestigiais ao amanhecer e ao entardecer (momentos em que se percebe melhor a movimentação da terra).
Pura crioulagem: a paciente fez, através do ato cognitivo, um distanciamento do arquétipo da grande mãe, ativado em seu aspecto mais ameaçador, cuja função era puni-la por haver saído de casa, contrariando a expectativa da mãe e a tradição da família. A aproximação sucessiva teve o efeito de uma medicação natural – homeopática, se pensarmos no similis similibus curantur[2]. Assim, as sessões dessa paciente estão em regime quinzenal, em manutenção. Conheço analistas do comportamentos puristas que ficariam consternados[3] com essa minha viagem pela psicologia analítica, e psicólogos junguianos (embora nem todos) que achariam a técnica de exposição “fast food” demais para suas ambições de exploradores das “profundezas” da psique.
Claro que poderia perfeitamente traçar uma descrição analítico-comportamental “pura” para todos os episódios: A punição recorrente da mãe como causadora de stress e a predisposição ao pânico, aprendida filogeneticamente (ou seja, herdada). Mas isso deixaria Gaia de fora, com seu útero devorador.
Ah, e para quê Gaia? Fez um enorme sentido, deixou-nos mudos, eu e a paciente, pensando nos mistérios entre os céus e a terra insuspeitados pelo meu vão pragmatismo…
Para os behavioristas, parafrasearia meu colega: sou um crioulo doido, até me identifico um bocado com o pragmatismo behaviorista, mas, perdoem-me, esta não é minha religião. E para os Junguianos poderia dizer, junto com Jung: “ainda bem que não tenho que ser junguiano”.
A melhor declaração vai para minha paciente: traga-me sua dor, e eu percorrerei os vales e montanhas de seu sofrimento a seu lado, usando qualquer conhecimento que eu tenha em seu benefício. Um crioulo doido não tem que escolher entre o alívio sintomático, a análise funcional e a análise dos símbolos: ele faz tudo junto, se o resultado é bom.
[1] A amplificação é uma técnica desenvolvida por Jung que envolve o uso de paralelismo míticos, históricos e culturais a fim de esclarecer e ampliar o conteúdo metafórico do simbolismo onírico.
[2] “similis similibus curantur” – princípio da medicina homeopática: semelhante cura semelhante.
[3] Citando GUILHARDI In Bernard Rangé (org.) Psicoterapia comportamental e cognitiva de transtornos psiquiátricos: O ecletismo teórico representa portanto, um exemplo de comportamento de fuga-esquiva que afasta o terapeuta comportamental do seu papel mais genuíno: trazer para a situação prática a proposta conceitual skinneriana de como lidar com os fenômenos internos. Uma proposta teórica só pode ser criticada e desenvolvida a partir do seu próprio referencial, isto é, o behaviorismo radical só pode crescer e se rever com o engajamento por parte de seus adeptos, na pesquisa e na reflexão crítica sobre seus conceitos. De nada adianta para o desenvolvimento de um corpo sistemático de conhecimentos a debandada para outras propostas teóricas, conceituais e práticas. Perde a abordagem, perde a Psicologia. Branch (1987) fez uma distinção útil entre ecletismo teórico (este inaceitável, já que uma posição teórica eclética equivale a ter os pés firmemente apoiados no ar…) e ecletismo tecnológico. Ecletismo pode parecer sedutor, mesmo parecer um exemplo de “mente aberta”, mas é inócuo. “O desenvolvimento e a compreensão de uma posição teórica é uma tarefa árdua. mas é exatamente esse esforço que leva ao avanço científico (e portanto, tecnológico). Ter uma visão unificada promove consistência por parte do terapeuta e permite teste e refinamento (ou até mesmo abandono) de sua visão com a progressiva experiência. Assumir uma posição teórica faz com que o terapeuta se torne um participante pleno da empreitada a que chamamos ciência” (Branch, 1987). (Os grifos em negrito são meus)