Crianças Roubadas

Uma remitologização do conto dos “Changelings” dos Irmãos Grimm

Há uma lenda oriunda da região setentrional da Europa, uma vasta região da Escócia à Irlanda, e da Normandia à Suécia, sobre os chamados changelings, ou crianças trocadas. O changeling é  normalmente, nas várias versões da história, a progênie de uma fada, de um troll, de um elfo, ou de outra criatura lendária, que é deixada secretamente no lugar de uma criança humana.

Em tudo se lhe assemelha, exceto em temperamento. Os pais, vendo alteração física nenhuma, não percebem de imediato a troca. Os seres lendários que perpetram esse ato estão motivados, quer pelo desejo de ter um servo humano, ou o amor de uma criança humana (já que sua própria progenie não tem capacidade de amar como um ser humano), ou mesmo por pura malícia.

De acordo a algumas lendas, é possível detectar changelings, porque são mais sábios que crianças humanas. Quando a troca é percebida a tempo, os pais devem devolver a criança aos seres que a deixaram lá, de modo a receber a sua de volta.

Algumas lendas consideram um castigo para os pais, essa traquinagem dos seres lendários. Falam que são levadas as crianças não batizadas, ou aquelas cujos pais cometeram algum pecado antes de seu nascimento.

Em algumas versões da lenda, a criança changeling é fisicamente deformada, tem a pele rugosa, temperamento malicioso, apetite voraz, entre outras características, sempre negativas.

Esse mito já foi usado muitas vezes com referência a crianças deficientes, incluindo autistas. Mas o propósito de tomá-lo aqui é desconstruí-lo, de modo que ele evoque uma resposta mais positiva do que a resposta medieval à criança “changeling”, porque faz todo o sentido do mundo que este mito seja não mais que a busca coletiva de sentido a respeito da dura realidade da quebra de expectativas, quando se recebe uma criança deficiente em geral, e em particular, de maneira até mais radicalmente dolorosa, quando se recebe uma criança com autismo.

Autistas parecem emocionalmente distantes, “totalmente outros”, bizarros. O estranhamento que provocam é mais danoso para o relacionamento familiar do que a descoberta de outras deficiências mais óbvias.

O núcleo arquetípico da lenda descreve com precisão o sentimento de estranheza e luto vivido pelos pais quando percebem que a criança que esperavam e imaginavam — seja o que quer que imaginavam ou queriam — não corresponde a sua expectativa, é uma criança “fria”, “distante”, “incapaz de amar” e outros epítetos que a ignorância dá aos autistas.

Não conhecer o ponto de vista dessa progênie lendária, élfica, fabulosa, leva a uma dor incomensurável, uma dor calcada na forma com que se imagina a própria história, como uma perda.

Vamos aqui tentar recontar essa história com foco não na criança que nos foi levada, mas da perspectiva dos — vamos assumir que sejam elfos — que as levaram, uma perspectiva certamente próxima, senão a mesma — das crianças “changeling”.

Dessa perspectiva, não há sortilégios que nos possam trazê-la de volta. Desde os Irmãos Grimm — que relatam o sucesso de ferver água na casca de um ovo para fazer rir o “changeling” — Até as buscas modernas da cura, pela evitação de vacina, por dietas obscuras, alguns pais tentam desesperadamente trazer os filhos normais de volta.

No reino dos elfos, o reino do mito e da fantasia, não há o que provar, não se trata de ciência, mas do próprio núcleo da vida. E este é composto das muitas histórias que contamos e ouvimos, a respeito de nós mesmos.

Histórias não só dão sentido a vida, como tornam-se esse próprio sentido. A vida, de uma perspectiva exclusivamente científica e materialista, perderia seu sabor, como tem perdido. Os elfos sentem-se alheios a esse mundo cego, e regido pelo acaso.

As histórias são espelhos dinâmicos: vemo-nos nelas, e as mudamos com nossa imagem, e assim, sucessivamente, vamos criando a nós próprios, como indivíduos e como sociedade.

É necessária uma remitologização que atenda aos anseios dos indivíduos “changeling”, que não contam sobre si essa história — que é de acalanto parental, não infantil — pois nela eles são tratados como estranhos e desprezados, apesar da sabedoria que possuem (e que está também representada nos contos).

As pessoas temem o desconhecido, num misoneísmo que pode até ser assassino, como em algumas culturas tribais, e mais próximo da “civilização” do que poderiam querer os seres humanos auto-proclamados “civilizados”. Jim Sinclair é uma das vozes da cultura “changeling” emergente. Temple Grandin também.

Os elfos que nos roubaram essas crianças estavam cumprindo um destino que nos faz melhores, pela convivência entre os povos, humanos e elfos. Não poderiam aparecer e propor a troca, algo que o tão conhecido misoneísmo da espécie humana impediria. Talvez até os matássemos, como fizemos com Sócrates, Jesus e tantos outros. Como são mais sábios que nós, sabiam que toda a coisa seria mutuamente recompensadora.

Todos aqueles que ensinam sortilégios para banir os “changelings” e devolvê-los a seus pais biológicos estão errados. Eles conseguem apenas, quando muito,  forçar os “changeling” a fingirem ser as crianças roubadas, sofrendo com isso o amargor de considerarem-se eternamente inadequados. Elfos crescidos entre humanos, parte de um povo nobre, sábio, senhores de seu tempo.

O relógio progressivo e acelerado dos humanos não lhes interessa; vivem num tempo outro, vendo coisas que não vemos, apontando para nós em recantos que não conhecíamos. Para isso estão aqui. Para isso foram deixados.
E as crianças roubadas?

Por mais sábios que sejam, os Elfos têm o que aprender. Por mais misoneístas e violentos que sejamos, espalhando nosso próprio sangue aos quatro cantos da Terra, desenvolvemos um saber que os elfos querem desesperadamente. Sabemos trocar. Para nós é pouco, fazemos isso como respiramos. Mas eles querem aprender. Falamos de modos invisíveis para eles, quase telepaticamente. Nos tocamos, nos beijamos. Nossa capacidade de amar é quase tão grande quanto nosso poder de destruir. E isso encanta os Elfos, que sabem muito bem que não se pode condenar toda uma gente pelos excessos cometidos por alguns, e têm uma grande esperança na humanidade.

Bem, amigos, agora vocês sabem a verdade. Comecei com esse blá-blá-blá científico apenas para vocês lerem até o fim. Agora que estamos no terreno real, o terreno do mito, posso perguntar a vocês: Que acham de aceitarmos o presente dos Elfos? Nossa criança roubada deve estar ensinando coisas maravilhosas no mundo da fábula. Aprendamos com o elfo que temos para cuidar e amar! Se ficarmos eternamente chorando pelo filho que não veio, perderemos a oportunidade de construir um futuro no qual Elfos e humanos, vivendo juntos às claras como ainda não pode ser, inaugurarão tempos de tolerância como jamais se viu, na história dessa planeta: E ainda menos, no tempo dos irmãos Grimm.

4 comentários sobre “Crianças Roubadas

  1. Oiiiii…. Acabei de estudar essa lenda em minha aula de Literatura aqui em Boston. Fizeram uma musica linda com o poema. Stolen Child – Loreena McKennitt…..

Deixe um comentário