Ficção e realidade

Como nossa própria percepção de nós mesmos se compara ao nosso conhecimento de um personagem de ficção

Estou fazendo um curso via Audible sobre escrita criativa, “Writing Great Fiction: Storytelling Tips and Techniques”, da série “The Great Courses: Writing”, um conjunto de palestras proferidas pelo professor James Hynes.

Em um dos capítulos, Hynes diferencia personagens ficcionais de pessoas reais, apontando o quão mais complexas estas são em comparação com aqueles, e demonstrando que a ilusão que a ficção proporciona, de estarmos dentro do pensamento dos personagens, contrasta marcantemente com o fato de — apesar de podermos empatizar e imaginar — não conhecemos os pensamentos dos outros: apenas os nossos próprios.

Logo uma ideia me ocorreu — que não é nova, nem minha, mas me fez pensar. Também nós temos acesso direto a uma parte muito pequena de nós mesmos, e boa parte de quem somos — e do que nos motiva — se nos vai revelando à medida em que vivemos e nos vemos no olhar das pessoas com quem convivemos.

Claro que somos mais complexos do que personagens, que não passam de um aglomerado de palavras bem construídas em cenas, sequências e atos num enredo. Mas será que — até por este motivo — você se conhece tão bem quanto conhece o seu personagem favorito?

Quem você é também é um aglomerado de palavras e cenas em sequência. Claro que essas cenas são mais ricas em informação, trazendo dados de todos os sentidos, impressos em nossa memória. E sabemos, desde Freud — e essa parte da psicanálise os estudos neuropsicológicos confirmam — que a nossa memória é seletiva.

Um personagem é construido através da escolha de momentos significativos que o definem e representam. Nenhum escritor põe  todo o cotidiano de um personagem num livro,  nem mesmo George R. R. Martin, que é um escritor bastante detalhista. Ele escolhe apenas aquelas cenas que são importantes para a caracterização do personagem, ou para direcionar o enredo.

Do mesmo modo, nossa memória depende do esquecimento seletivo. Só armazenamos aquilo que cabe no nexo que construímos a respeito de nós mesmos, memórias que gravitam em torno de nosso senso de self, de sermos nós mesmos. Do resto nos livramos dormindo e sonhando. 

Apesar de não haver consenso científico quanto à natureza dos sonhos, sabemos que há renovação celular, inclusive neuronal (que há alguns anos seria inadmissível cientificamente), e conteúdos se reorganizam. E esta reorganização não é aleatória: ela também gravita em torno do nosso misterioso senso de identidade, de estarmos confinados dentro da nossa pele, de vermos o universo através da nossa perspectiva. Todo esforço empático — inverter papéis com o outro — é um exercício de imaginação criativa. 

A memória, este componente central da  identidade, é dependente da  “temperatura” emocional no momento, e de “gatilhos” do  ambiente interno — sua atividade mental — e externo, os eventos da vida diária, ambos apenas parcialmente sob controle. Ambos compondo o contínuo fluxo da experiência cotidiana, a partir de quando uma pessoa acorda até a hora que dorme, e por vezes durante o sono, sonhando.

Também nós temos uma ideia tangencial de quem somos, e de quem podemos vir a ser, ou de quem poderíamos ter sido, segundo pequenas histórias encadeadas que contamos sobre nós mesmos, pensando e conversando com quem convivemos.

Ah, e tem o amor. As pessoas que amamos — e as que odiamos — são instrumentais para a construção desse enredo da nossa vida. Elas são nossas companheiras ou antagonistas — no caso aqui o amor em seu reverso — que nos permitem contar a história da nossa vida. Ela só faz sentido se pudermos contá-la de algum modo a alguém — e a nós mesmos.

Por que seu casamento não deu certo? Por que está casado há tantos anos com a mesma pessoa? Porque escolheu fazer o que faz profissionalmente? Quanto melhores as respostas para este tipo de pergunta, melhor nos conhecemos.

E como reconhecer uma resposta melhor? Simples. As melhores respostas nos põem como protagonistas das nossas próprias histórias. Atores responsáveis. Tomamos consciência de que somos mais do que o efeito, de uma cascata aleatória de circunstâncias externas a nós mesmos. 

Apenas deste ponto de vista podemos ter uma sensação de que as coisas têm sentido, de que valem a pena, como quando vemos um bom filme, ou lemos um bom livro.

Encontrar sentido para o fluxo de eventos desconexos que se dão conosco todos os dias pode ser um desafio. Quando falhamos em encontrar um nexo, falhamos também em saber qual o próximo passo, como direcionar nossa vida. Ficamos numa espécie de “bloqueio de escritor”.

Porque no livro da vida, somos ao mesmo tempo escritores e protagonistas dessa história contada em primeira pessoa por nós — e em terceira por quem amamos — ou odiamos. Estas narrativas, precisamos concatenar com as nossas, em busca de um nexo harmônico, e belo.

Por isso, quando quer que você esteja se sentindo perdido, sente-se aí mesmo onde está e conte a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que lhe aconteceu desde a última vez em que as coisas fizeram sentido. Talvez comecem a fazer novamente.

Outro modo de ver meu trabalho como psicoterapeuta é como a contínua tentativa de inspirar pessoas a se empenhar em encontrar esse nexo, definindo que tipo de personagem ela é, no livro que é sua vida. Ou no filme, que as pessoas estão cada vez mais sem paciência para ler.

Somos personagens parcialmente criados por nós mesmos, mas não necessariamente. É possível viver uma vida inteira “dormindo” como um zumbi, uma vítima, um resultado. Tomar responsabilidade sobre si é parte inseparável da condição de co-criador do livro da própria vida.

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